E chovia, chovia tanto que o asfalto parecia fumegar. Como cachos, grossos pingos batiam violentamente em tudo e nada parecia a salvo, nem da enxurrada nem do vento em rajadas e a fazer-se assobiar por entre todas as frestas e esquinas. A agua estendia-se agora por todo o lado como um lençol, subindo, galgando, arrastando tudo consigo ao seu passar e atenuando o relevo e as reentrâncias das bermas e passeios, porque tudo parecia já um enorme oceano, apenas salpicado de pequenas casas como barquitos a remos à deriva. Parecia impossível, parecia assustador, mas lindo, tão impossível e assustador, porém tão lindo, que nos deixava embriagados, nostálgicos e sem reacção. Eu, agachado, espreitava pela janela através das vidraças, mas com as persianas meio fechadas, e às escuras, em silêncio, porque assim me sentia mais seguro ou menos exposto à intempérie. E só quando a luz dos raios iluminava todo o exterior como se fosse dia, e se desenhavam em mim as sombras dos caixilhos reflectidos, anunciando o bater forte de mais um trovão, me permitia a mim próprio respirar, voltando a suster-me até ao rugido do próximo. Não se via vivalma, mas não fazia frio, ou, pelo menos, não o conseguia sentir. E continuava ali, sozinho, sem ninguém, e se eu tive tanta gente... mas perdi-os, perdi-os todos, um por um, sem dar conta, sem saber que os estava a desperdiçar, sem nada fazer, nem bem, nem mal, e isso foi fatal. Há quem falhe por errar, por má índole, por desprezo, por egoísmo, mas eu não, nem sequer me apercebi onde errei, se é que errei, apenas me sentei e esperei, e esperei, e esperei até que tudo se foi e nada nunca chegou. Decidi então meter-me a caminho, e sim, seria hoje, seria agora, seria já, e senti-me outra vez forte, vivo, audaz, decidido, impaciente, com o peito a estremecer, de novo a adrenalina a fervilhar, o coração a saltar, e tudo parecia agora voltar a fazer sentido, tudo se conjugava, tudo o que parecia disperso se voltava a encaixar, e apenas lamentava não o ter sabido antes, porque já lá estaria... e como eu tremia, meu Deus! Não levei bagagem, porque de nada me serviria lá, e viajei. Viajei durante 3 meses, 3 dias e 3 noites, mais 3 horas e 3 minutos e cheguei 3 segundos depois. Para me receber estavam 3 meus iguais, em 3 minhas distintas idades, que me beijaram 3 vezes, e, que com 3 chaves me decidiram presentear. Cada um deles os 3, estava junto a cada uma das 3 portas que poderia eu escolher abrir em 3 tentativas e depois, 3 decisões nessas 3 salas mudar por 3 vezes, e no fim, as 3 poder restaurar. Extasiado, por momentos pensei ser dono do meu destino, fazedor da minha própria história, tanto presente como...passada. Tudo poderia mudar, reconstruir, adquirir, baralhar, partir e voltar a dar, e até ensaiar. E entrei numa e noutra e noutra e noutra e voltava atrás, e passava à frente, e mais ali e menos aqui, num ritmo tão frenético quanto a velocidade a que a mim mesmo me obrigava a agir. Apaguei passagens, forcei outras existirem, suprimi desgostos, mudei amores, evitei tantas outras dores, e realcei alegrias e concretizei muitas e muitas fantasias. Agora sim, estava tudo a ficar exactamente como sempre gostaria que estivesse estado. E tudo o que não havia sabido construir numa vida, tinha conseguido concretizar num dia. Esgotei completamente todas as oportunidades, abdiquei de restaurar o que fosse, e fiquei finalmente saciado. Porém, quando estava a terminar, e, resultado das mudanças, numa enorme explosão de luz com infinitas fagulhas coloridas a cintilarem prolongadamente numa dança exótica diante dos meus olhos, aqueles 3 meus iguais fundiram-se num só, num novo e diferente meu igual, produto dos meus desejos, mas mais poderoso, mais abrangente, mais consistente, quase perfeito, sem metade das cicatrizes que me atormentavam os pensamentos e faziam regressar fantasmas, e com toda a pujança de um passado imaculado e construído a dedo. E era belo, irresistível, não sabia eu que também aterrador... Segui-o por entre vários corredores com enormes paredes de vidro que construíam um emaranhado de células, como gigantes aquários mas sem agua, e onde dentro de cada um se desenrolavam cenas passadas da minha vida. Por todo o lado direito dos corredores, as cenas reais e que facilmente eu reconhecia, pelo esquerdo, as que eu agora tinha adoptado como válidas mas que ainda que perfeitas, me soavam a estranhas. No fim de um desses corredores, existiam duas dessas células, mas vazias. Fez-me entrar na da direita, seguindo ele para a da esquerda. Fiquei a observá-lo. Entrou, mirou-se duas os três vezes numa das paredes como se fora ao espelho, abriu uma porta que dava para o exterior e saiu, tomando o meu lugar. Eu, procurei fazer o mesmo, mas surpreendentemente, a minha era totalmente fechada, e não tinha nenhuma porta, nem janela, nem sequer existia já a abertura por onde havia entrado. Estava fechada. Completamente selada. Estanque. Procurei sair durante horas a fio, gritei, pedi socorro, implorei, e chorei, berrei, amaldiçoei, vociferei, mas, de nada adiantou, até que caí exausto e me acomodei. Já desisti de chamar, e nem esperança tenho em sair. E aqui estou, preso, encurralado e condenado para todo o sempre a apreciar a vida do meu novo eu, que teima em passar consecutivamente, em frente, como num filme, na célula da esquerda onde ele entrou. E parece que sou feliz! Outra vez feliz! Muito feliz! Nessa nova vida que sorvo enquanto perco as feições e me sinto a derreter, nesta clausura.
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LETRASALINHADAS