sábado, 18 de outubro de 2008

NA DEMÊNCIA DA MINHA SOLIDÃO


Adoro esta imagem. Olho-a horas a fio, vezes sem conta. Olho-a tanto que até me chego a sentir embrenhado nela. Alguém ali foi feliz, de certeza muito feliz, se bem que houveram tempos de tristeza também e morte no fim. Nem sempre foi assim como está agora, como sobrou, como lhe permitiram sobrar. Antes era radiante, bem pintada com cores vivas e berrantes, sem grades nem correntes, mas com um jardim tratado ao redor e cheio de flores, aliás, cheio de perfumadas flores garridas, e uma confortável cadeira de balanço e dois bancos corridos de três lugares cada, onde todos gostavam de se sentar a aproveitar o revigorante fresco do final do dia que sempre se seguia às tardes de insuportável calor, fazendo adivinhar noites de estupenda magia. Hesitei onde ficaria, Bolívia? Colômbia? Venezuela? Chile? Perú? Decerto na América, na América Latina, se bem que também uma perdida ilha grega lhe assentasse na perfeição, mas costumo-lhe ouvir vozes em tosco Espanhol ao redor, que entoam o que me parecem ser alegres musicas de Compay Segundo ou Ibrahim Ferrer, ao ritmo das guitarras e congas, e das gargalhadas estridentes por entre as danças dos mais novos que se revezam consoante o inicio e o final dos ininterruptos turnos de trabalho na fábrica de enrolar. Decididamente América Latina. Cuba. E costuma existir também uma jovem, maravilhosamente bela, de longos cabelos negros, de olhos bem abertos e expressivos, de seios redondos e cheios, meio destapados pelos habituais decotes pronunciados por onde escorrega até desaparecer um reluzente crucifixo, com roupas também elas coloridas, também elas floridas com saias até aos pés, bem largas e rodadas. Não sei porquê lembro-me sempre de Frida. Mas não é ela, não é Frida Kahlo quem ali habita, embora se assemelhe em muito na forma de vestir, nos padrões frutados com pequenos abacaxis e melancias vermelhas estampadas em vivos fundos verdes e amarelos, mas muitíssimo mais meiga e mais bela, e mais alta, e mais saudável e igualmente insinuante e desinibida. Vivia antes com o pai, nunca conheceu a mãe que faleceu ao dar à luz, e o pai, esse, sem nunca a molestar, nunca a perdoou e não evitava ceder todos os dias a afogar no rum a mágoa da irreparável perda. Baixo, gordo, de longo bigode de pontas arrebitadas, fez questão de a guardar, de a resguardar, de a esconder do mundo, da vida, do convívio e também por isso, nunca conheceu namorado. Ele adoeceu, e ela à sua cabeceira, noite e dia, até o perder, porque desistir há muito ele tinha, há vinte e quase um anos atrás. Depois um rapaz, que era médico, o médico do pai. Tal como eu, ele era meigo, muito meigo e extremamente atento e alto, mas ao invés, magro, seco, louro, e muito mais feliz, com uns penetrantes olhos castanhos claros e sempre disponível. Difícil foi resistir-lhe pela estonteante beleza dela. Pediu-a em casamento, casaram, e mudaram-se para esta casa, e foi o inicio. Ela, ainda que tenha aceite casar mais por necessidade, mais por comodidade, mais por segurança, mais por medo de ficar sozinha no mundo, do que por amor que nem sequer desconfiava poder existir, descobriu logo na primeira noite que o amava loucamente e que nada nunca mais seria igual na sua vida. E ficaram juntos, juntos nesta casa, sempre nesta casa, sempre felizes, sempre rodeados de festas e de convívio e de amigos. Sei que tiveram filhos, porque uma ou outra vez ouvi os seus tímidos risos, ou os seus choros a meio da noite, mas, estranhamente, nunca os vi, nem sequer os consigo imaginar, ainda que seguramente existam, até porque têm mesmo de existir. A casa essa, era vê-la radiante de dia, elegante de noite, sempre arranjada, sempre idolatrada e sempre invejada, não como agora que ninguém perde tempo a olhar, e sempre que podem a evitam. Mas parece que dos vinte anos de folia e alegria nela passados ninguém se lembra, nem mesmo os "habitués" dos bancos corridos... Antes a preferem recordar por aquela fatídica semana, uma única semana, com o renegar da casa em catadupa por todos, com o seu fecho a grades e cadeados, coincidente com o seu eterno amaldiçoamento. Abandonada por todos, porque, ele e ela já não estavam, também por ele, porque mesmo médico não o soube evitar, e por ela, porque morreu, morreu ainda jovem e capaz, nos braços dele, com o mesmo brilho no olhar com que o presenteou naquela longínqua primeira noite e que sempre soube sem esforço conservar. E nunca mais da casa se ouviu falar, pelo menos não até eu nela conseguir de novo penetrar com o meu persistente olhar. E seduz-me, e atrai-me, e atrai-me mesmo muito, e volta a seduzir-me antes de me atrair de novo...
Terá sido mesmo assim???

8 comentários:

ervadecheiro disse...

Frida - tal como tu (e estou a supor) admiro a sua vida, a sua história, a sua força de viver,de lutar, de conquistar.Também a sua arte e capacidade de amar.
E se demência é tão bem expressar, que a tenhas para sempre, gémeo.
Pena que entre nós se tenha tanto medo das palavras, que não se diga um olá, quando se visita, um volta sempre, quando se é visitado.
Voltarei.

Teresa Gaudêncio Santos disse...

Obrigada pela tua visita, e pelas palavras que me deixaste.

Também tu me enriqueces, a cada texto que publicas... sejam os teus sempre maravilhosos poemas, seja esta deliciosa prosa. Devo dizer-te que adorei cada letrinha desta demência... podes (e deves) ter mais!

Adoro saber que tenho a tua companhia, nestes momentos de "solidão acompanhada"... Tu tb tens a minha, por aqui.

Volta sempre... eu também volto!

Beijinhos,

T

bia de barros disse...

ah, o intrigante mistério da vida...
obrigada pela visita.
espero rever-te breve!
abraços de luz,
x)

tintasefeltro disse...

Adorei esta "demência"!
A imagem que a inspirou também me seduziu. Até apetece pintar...
Até breve.

f@ disse...

Quem sabe?
Belo texto e imagem.

Beijinhos das nuvens

Cynthia Lopes disse...

Obrigada por sua visita e comentário. Volte sempre as portas estão abertas! Lindo texto e imagem, adoro ser capturada por algo inusitado, como esta sua paisagem, e colher palavras que expressam sentimentos e vivências para lá do que a própria imagem significa. Um grande abraço,
Cynthia

Fátima disse...

Olá amigo, perdoa-me a ausência mas mais uma vez deve-se à falta de tempo. Por esse motivo, resolvi encerrar um ciclo no meu blog. De qualquer forma não vou estar longe, estou aqui no meu outro cantinho: www.boasenergias.com onde és sempre bem vindo!

Beijinhos cheios de boas energias! ♥

em azul disse...

Espero que não!
Preciso com urgência de uma história com final feliz.

Abraço
em azul